A ARTE NA CONTEMPORANEIDADE COMO UM PENSAR A NÓS MESMOS



ARTIGO CIENTÍFICO

A ARTE NA CONTEMPORANEIDADE COMO UM PENSAR A NÓS MESMOS

MARÍLIA COTA PACHECO

INTRODUÇÃO

Falar de teorias da arte contemporânea implica de antemão definir o que é arte contemporânea, isto é, a partir de quando podemos nos referir ao contemporâneo? Bem, dizer quando a época em que vivemos começou não é uma tarefa fácil. Estamos inseridos na contemporaneidade e justamente por isso é difícil alcançamos o distanciamento necessário para refletirmos e definirmos o que é a arte contemporânea e, por conseguinte, suas respectivas teorias.

Aqui, Hoje, o ponto de partida é um determinado episódio que Lorenzo Mammì ressalta no texto “Isto aquilo e o valor disso” de seu livro O que Resta: Arte e Crítica de Arte: “apesar de terem sido pintados a poucos anos de distância, ambos nos Estados Unidos, os quadros Target with plaster casts - Alvo com moldes de gesso (1955) de Jasper Johns, e That (1958) de Kenneth Noland (...) ocupam pólos opostos numa polêmica que determinou, entre o fim da década de 1950 e o início da de 1960, o encerramento de certa ideia muito prestigiosa de modernismo, defendida na época pelo crítico Clement Greenberg, e o triunfo de tendências que se costuma chamar de contemporâneas ou pós-modernas.” [1]

Noland pertence a segunda geração dos abstracionistas americanos que Greenberg apoiou entre as décadas de 50 e 60. Greenberg teorizava uma tendência irreversível da pintura moderna para a platitude (flatness). Resumidamente, o conceito de flatness pode ser ilustrado assim: enquanto suporte material, o quadro em si tornase mais evidente e não funciona mais como uma janela virtual que aponta para outro espaço, o quadro tomado como um objeto concreto aponta “para um espaço radicalmente outro” pois as formas do quadro rigorosamente bidimensionais, “tornase alheias às formas do mundo, que são tridimensionais. E, como bem ressalta Mammì, “Não por acaso, o título desse quadro é That (aquilo), como se apontasse para algo distante, longe da presença imediata da superfície da tela. (...) A obra de Johns, ao contrário, é um This, um isto.” [2]

[1] Mammì, Lorenzo. O que Resta: Arte e Crítica de Arte. São Paulo, Cia Das Letras, 2012, p. 29.

[2] Idem, p. 32.

Contudo, a técnica de Johns(a pintura em encáustica)3 faz com que o objeto seja “literalmente recoberto de pintura, e essa camada espessa o torna mais instável ao olhar,” [4] de modo que o “isto” torna-se um “aquilo” na medida em que se tem a impressão de olhar para algo abandonado que foi recoberto aleatoriamente por uma relva. O “aquilo” é algo que está afastado de um valor de uso. Para Mammì, a autonomia do espaço pictórico é mais frágil no quadro de Johns do que no quadro de Noland, apesar de haver em Johns um reconhecimento da impossibilidade de reconduzir totalmente o espaço pictórico ao espaço comum. Nas palavras de Mammì:

“Para Noland, a autonomia da obra (seu ser aquilo) era consequência da necessidade de a pintura resolver seus próprios problemas (em primeiro lugar a relação entre figura e formato); para Johns, a autonomia da obra é o problema.”

Para Johns, a autonomia da obra é um problema porque o “isto” e o “aquilo” não poderiam ser “apreendidos como um conjunto se o espaço em que se dão a ver não fosse um espaço já construído, qualificado para lhe conferir unidade: o espaço pictórico.” [5] Pode-se dizer que, na obra de Johns, a autonomia do espaço pictórico é mais frágil por causa do “isto” de sua obra, que diz respeito a uma não estranheza entre mundos bi e tridimensionais. Segue-se que a não estranheza entre os dois mundos indicia a possibilidade de “pensar numa obra de arte que seja apenas um objeto entre outros e que não comporte uma fratura entre o espaço da obra e o espaço do mundo.” [6]. Para Mammì, esta é a questão central de toda a arte contemporânea porque, “para muitos, o fim de uma clara autonomia da obra comporta, tout court, o fim da arte.” [7].

Irei aproveitar tal leitura de Mammì como fio condutor para esboçar a concepção de arte na modernidade que, ao meu ver, suscitará possibilidades teóricas distintas para a arte contemporânea. Estou falando da concepção de Clement Greenberg. Mas, antes, farei uma brevíssima remissão à origem da ideia de “morte da arte” e da possibilidade de um resgate filosófico da arte enquanto poder de criação.

[3] Encáustica (deriva do grego enkausticos, gravar a fogo) é uma técnica de pintura que se caracteriza pelo uso da cera como aglutinante dos pigmentos e pela mistura densa e cremosa. A pintura é aplicada com pincel ou com uma espátula quente.

[4] Mammì, Lorenzo. O que Resta: Arte e Crítica de Arte. São Paulo, Cia Das Letras, 2012, p. 32.

[5] Idem, p. 34.

[6] Idem, p. 34.

[7] Idem, p. 35.



I - A ORIGEM DA IDEIA DE “MORTE DA ARTE”

A ideia de que a arte possa morrer e esteja morrendo, remonta, como se sabe, a Hegel. Breve: na Fenomenologia do Espírito, Hegel apresenta a construção do saber absoluto estruturada em etapas de amadurecimento da consciência da cultura ocidental. A arte é uma dessas etapas. A época de Hegel seria a da passagem da arte para a filosofia. O ápice desse processo, ou seja, o saber absoluto, dá-se com a filosofia, ocorrendo uma reconciliação de todas as etapas anteriores. Tal reconciliação denota a realização do saber absoluto como um saber de sua totalidade. Segue-se que, na medida em que o ciclo completo da formação da consciência já se realizou de modo objetivo no mundo, qualquer realização posterior no campo da arte refere-se ao passado da história do amadurecimento da consciência da cultura ocidental. Com o fim, por assim dizer, da história, a atividade artística perde sua autonomia quanto à formação da consciência da cultura ocidental e, também, a crítica e a história da arte veem-se obrigadas a orbitar em torno dessa noção de fim da arte, isto é, se a arte perde sua função na formação da consciência da cultura ocidental, como é possível interpretar a operação artística depois do fim da arte?

II - O RESGATE DA IDEIA DE AUTONOMIA DA ARTE


Essa pretensão sistemática da filosofia designa uma posição da arte que supera as estéticas prescritivas e, ao mesmo tempo, coloca em xeque a autonomia da arte. Justamente por isso tal pretensão entra em crise. Sem nos alongarmos muito, Nietzsche, para quem a arte é um perfeito elo entre existência e criação, exemplifica bem a crise de uma pretensão sistemática da filosofia, “(...) A existência do mundo só se justifica como fenômeno estético.” [8] Esta afirmação encontra-se no prefácio denominado “Tentativa de autocrítica” da edição de 1886 de O Nascimento da Tragédia de 1872, onde, discorrendo sobre a vida e arte no contexto das poesias gregas épica e trágica, a união entre vida e arte dá-se a partir do que ele chama de “impulsos artísticos da natureza:” o apolíneo e o dionisíaco.

Pode-se dizer que a base ou a origem da arte apolínea é o impulso dionisíaco bárbaro, que destrói os valores gregos de civilização. E, justamente por conta do caráter subversivo de sua origem, a arte apolínea legitima a existência de modo superficial, isto é, a sustentação da serenidade alcançada pode desmoronar a cada manifestação embriagadora do impulso dionisíaco bárbaro. Entretanto, os artistas dionisíacos conceberam a tragédia, que tem o poder natural de cura contra o impulso dionisíaco bárbaro.

[8] Nietzsche, O Nascimento da Tragédia; São Paulo, Cia das Letras, trad., notas e posfácio de J. Guinsburg, 1999, p. 47.


Vemos aqui um resgate da autonomia da arte mais do que a do artista. A arte em si é concebida como vontade de criação. Nos livros que se seguem a O Nascimento da Tragédia, Nietzsche não faz mais menção aos "impulsos artísticos da natureza." Mas, essa ideia de autonomia da arte enquanto vontade criadora perdura, ao meu ver, em toda sua obra. Mencionei em especial os “impulsos artísticos da natureza” por que ajuda a compreendermos o embate entre color-field painting (Noland) e pop art (Johns), embate este que apresentarei a seguir me valendo da regra geral implícita na noção de “impulsos artísticos da natureza,” concebida por Nietzsche. Estou entendendo como regra geral o movimento dialético de tais impulsos na efetivação eterna, por assim dizer da vontade de criação na arte.

A partir disso distinguirei a concepção de arte de Greenberg da interpretação que Steinberg faz desta e, por conseguinte, relacioná-la a seu apoio à pop arte e, ao mesmo tempo, estabelecer a diferença entre a pop e a minimal arte. Em seguida, apresentarei a arte conceitual de Kosuth como uma terceira via para o problema levantado a partir da oposição entre Greenberg e Steinberg. Tais concepções divergem entre si de tal modo que, ao meu ver, acabam por nos fornecer uma ideia estética de concepção de arte na contemporaneidade. Ideia estética no sentido kantiano do termo, isto é, uma representação da imaginação que dá muito a pensar, sem que contudo qualquer conceito possa ser-lhe adequado [9].

III – O EMBATE ENTRE COLOR-FIELD PAINTING E POP ART

Pois bem, para tanto, primeiramente, vou imaginar dialeticamente o embate color-field painting e pop art sob a luz dos “impulsos artísticos da natureza” de Nietzsche. O primeiro considero uma realização apolínea de arte como “solução superficial” contra o horror do impulso dionisíaco bárbaro capaz de destruir os valores da civilização, no caso, o da civilização ocidental entre o período que compreende o final do século 19 e meados do século 20, ou seja, o impulso bárbaro que leva-nos à I e II Grande Guerra Mundial. Neste sentido, o color-field painting constitui o ápice da arte apolínea no modernismo. Enquanto tal, a serenidade que alcança é superficial, e a cada manifestação embriagadora do impulso dionisíaco bárbaro, o pilar de sua sustentação desmorona.

Nesse contexto metafórico, ao que então corresponderia a expressão a cada manifestação embriagadora do impulso bárbaro? Tal expressão corresponderia, ao meu ver, a cada manifestação da razão instrumental, ou seja, a cada manifestação de alienação da capacidade reflexiva que ocorre, por exemplo, na cultura de massa.

[9] C.f. Kant, Crítica da faculdade do Juízo. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1995, 192-193 (159)

Na sequência dessas manifestações do impulso bárbaro, podemos pensar a pop arte como uma manifestação dionisíaca mas não mais como impulso bárbaro e sim como um impulso dionisíaco já informado, por assim dizer, pelo impulso apolíneo do color-field painting. O ponto de inflexão para a manifestação do impulso “dionisíacoapolíneo” seria a obra de Johns e creio que o maior divulgador desse nascimento, por assim dizer, da tragédia contemporânea seja talvez Andy Warhol. Recorrendo mais uma vez às palavras de Mammì a respeito de Warhol: “Ou seja: ao imitar o processo de consumo industrial das imagens, a produção artística se torna (...) um processo do mesmo tipo.” [10] Fim de citação. Isso, ao meu ver denota o impulso dionisíaco bárbaro. Citando Mammì novamente:

“No entanto, (...) a obra, o quadro de fato existente, define o lugar em que esse processo se torna irônico, contraditório, (....). Ela projeta esse caráter reflexivo atrás de si, no processo industrial de reprodução que se torna visível na tela, e à sua frente, nas infinitas reproduções que possibilita. É ela que torna verdadeiro, porque autoconsciente, um sistema de reprodução que é eminentemente um sistema de falsificação.” [11] Eis aqui, ao meu ver, o impulso dionisíaco já informado pelo apolíneo.

IV – A CONCEPÇÃO DE ARTE DE GREENBERG


Aqui, cabe esclarecer porque considero color-field painting uma manifestação do impulso apolíneo. A concepção de arte de Greenberg tem como base a ideia de que a arte moderna coloca em primeiro plano as características não miméticas da pintura e, justamente por isso a arte deve investigar a sua própria natureza. Para Greenberg, o “virar-se para si mesma” levaria necessariamente cada arte a identificar aquilo de único na natureza de seus meios. “Assim, cada arte se tornaria ‘pura’, e nessa ‘pureza’ iria encontrar a garantia de seus padrões de qualidade, bem como de sua independência.” [12]

A mimese deveria ser abandonada e cederia lugar às características próprias da pintura: a planaridade (flatness), a própria tela, as tintas, etc. Daí a grande aposta de Greenberg na pintura abstrata que, por sua vez, representaria o ponto culminante de uma narrativa histórica que não cede ao impulso dionisíaco bárbaro porque o inexorável de tal narrativa assume a forma de uma imutabilidade conduzida pelo gosto. Em seu texto “O juízo e o objeto estético,” Greenberg diz, (cito):

“Afirmei anteriormente que não era possível estabelecer nenhuma diferença entre o estético e o artístico; que toda experiência estética deveria ser considerada arte. Mas fui obrigado a levar em conta a diferença entre a experiência estética em seu estado mais bruto e abrangente – que denominei “arte crua” – e o gênero de experiência estética comumente reconhecido como arte – que denominei de arte formalizada ou formal.” [13] Mais adiante Greenberg diz “a experiência estética é a experiência da experiência”. [14]

Creio que esta afirmação constitui em boa parte a abertura para a contestação de sua concepção de arte, a partir de Johns, na contemporaneidade. Por quê? Ora, enquanto arte formalizada, a experiência estética torna-se comunicável, pública, porque adere às convenções de seu próprio tempo. Ou seja, as convenções estabelecidas historicamente submetem-se ao “gosto” de cada época. A arte crua é sempre a mesma, mas a sua formalização é determinada historicamente pelo gosto. A forma da arte ser determinada historicamente pelo gosto não constitui propriamente a abertura para a contestação da concepção de Greenberg, antes, a sua noção de uma progressão linear da história, sim, abre a porta para tanto. Vejamos o porquê.

Uma evolução linear da formalidade da arte, o purismo formal alcançado com o planaridade (flatness), apresenta uma afirmação definitiva de um campo autônomo da arte e, também o fim da ilusão mimética. Segue-se que, o fim da ilusão mimética gera o campo do puramente óptico, como ressalta Mammì. [15] Cito:

“(...) se o puro óptico não remete a nada de real, (na vida real a mera flatness não existe), mas sugere algo que não existe, não seria ele mesmo uma ilusão, um trompe-l’oeuil às avessas? O artista – e o crítico com ele – correm o risco de se tornar (...) especialistas de sensações ópticas sem fundamento real nem ideal, como suspeitava Steinberg.” [16]

[10] Mammì, Lorenzo. O que Resta: Arte e Crítica de Arte. São Paulo, Cia Das Letras, 2012, p. 44.

[11] Idem, pag. 44.

[12] GREENBERG, C. Clement Greenberg e o debate crítico. Org. Glória Ferreira e Cecília Cotrim de Melo. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 102. .

[13] GREENBERG, C. Estética doméstica – Observações sobre a arte e o gosto. Tradução de André Carone. São Paulo: Cosac & Naif, 2002, p.87.

[14] Idem, p. 88.

[15] Mammì, Lorenzo. O que Resta: Arte e Crítica de Arte. São Paulo, Cia Das Letras, 2012, p. 41.

[16] Idem, pag. 41.


V – LEO STEINBERG, POP ARTE, MINIMALISMO E ARTE CONCEITUAL

Leo Steinberg foi um dos principais defensores da pop arte e opositor de Greenberg na década de 1960. Ele via uma relação entre a teoria de Greenberg sobre uma arte que se torna crítica de seus próprios meios e “o princípio de uma sempre maior especialização das atividades, típico do sistema industrial americano.” [17] A percepção de tal relação traz à tona uma separação de campo da arte bem específica no caso da pop arte, a saber: a arte ocupa um setor autônomo dentro do sistema geral da produção industrial.

Isso, por sua vez, também determina a diferença entre a posição de Greenberg sobre os fundamentos materiais da operação artística e “de muitas poéticas construtivistas e concretistas, ou até minimalistas (...).” [18] Para Greenberg, os fundamentos materiais são categorias gerais históricas e culturais, mas a determinação histórica da “forma” na arte é dada pelo gosto da época e não literalmente pelos fundamentos materiais. No caso do minimalismo da obra Timber piece (peça de madeira, 1964) de Carl Andre, a obra de arte assume o procedimento industrial como seu fundamento, é gerada como um produto industrial. Entretanto, diferentemente da interpretação de Steinberg que aponta para um campo autônomo da arte dentro do sistema geral da produção industrial, no minimalismo de Andre, como bem ressalta Mammì [19], a obra de arte revela esse processo de produção, (...) enquanto o produto costuma escondê-lo, isto é, “a maneira de estocar as toras de forma econômica e racional cria por si mesma a forma.” [20]

Então, com o até aqui exposto, poderíamos pensar numa definição de arte na contemporaneidade a partir da arte pop e minimalista, como resposta à dificuldade que se apresenta na teoria de Greenberg, quanto ao caráter ilusório do campo puramente óptico, que mencionamos anteriormente. A arte é “um processo autoconsciente de criação que, justamente por isso, torna verdadeiro um sistema de reprodução de falsificação.” [21] Pode-se dizer que na arte pop e minimal, a teoria de autonomia da arte de Greenberg é atacada por meio de uma aproximação entre arte e vida, ou arte e produção de bens de consumo. Entretanto, cito Mammì:

“Além da pop e da minimal, há ainda uma terceira solução ao problema levantado por Greenberg: Joseph Kosuth a defende em seu artigo “A arte depois da filosofia, (1969) (...) Segundo Kosuth, a arte é um sistema de valores que não remete a nada fora de si, nem mesmo a uma aparência sensível. As obras, como enunciados da matemática, da lógica e da geometria, não precisam de nenhuma remissão à experiência para ser validadas: são proposições analíticas que dizem respeito apenas à essência da própria arte. Cada obra de arte é uma definição de arte.” [22]

Em Kosuth, a versão greenberguiana da autonomia da arte é contestada de modo bastante distinto daqueles da art pop e minimal. Não faz uma aproximação entre a arte e produção de bens de consumo, antes, Kosuth entende que a arte produz o real como ideia daquilo que nela era puramente ideal. A relação entre intuição sensível e ideia ocorre no cerne da própria obra de arte mediante uma análise formal, de modo que a passagem da ideia à imagem sensível gera inevitavelmente um número indeterminado de outras definições. Tomemos como exemplo a sua obra “Uma e três cadeiras.” Recorro novamente às palavras de Mammì: “É composta de uma cadeira, uma fotografia da mesma cadeira e a ampliação fotográfica de um verbete de dicionário com a definição de cadeira. O autor não participa da montagem, seu trabalho consiste apenas em fornecer um papel com instruções bastantes enxutas. A partir dela qualquer um pode montar a peça (…).” [23]

Da bula de instruções conhecemos só suas realizações. A bula encarna, por assim dizer, o conceito da obra “Uma e três cadeiras.” A obra montada é a imagem sensível de tal conceito. Aquilo que permite a análise formal de modo que a passagem do conceito à imagem gere um número indeterminado de outras conceitos é, ao meu ver, a disposição dos objetos. É feita de modo que, na medida do possível, o público não leia a disposição dos objetos como artística. A ordem dos objetos é sempre a mesma: a fotografia a esquerda, o verbete a direita e a cadeira no meio. Por um lado, isso parece evitar a sensação de uma abstração progressiva do objeto à imagem, da imagem ao texto, ou uma construção cumulativa do tipo imagem + texto = objeto. Ainda quanto à disposição dos objetos, outro fator que suscita a análise formal é a visão frontal da disposição dos objetos. Isso impede a introdução de uma plasticidade e dramaticidade na obra. [24]

[17] Mammì, Lorenzo. O que Resta: Arte e Crítica de Arte. São Paulo, Cia Das Letras, 2012, p. 40.

[18] Idem. pag. 40.

[19] Idem, pag. 42.

[20] Idem, pag. 42.

[21] idem, pag. 44.

[22] Mammì, Lorenzo. O que Resta: Arte e Crítica de Arte. São Paulo, Cia Das Letras, 2012, p. 45.

[23] Idem, pag. 47.

[24] Ibidem, pag. 53.

[25 e 26] Ibidem.


Breve: pode-se dizer que, no caso de Kosuth, a arte não pode ser reduzida nem a ideia nem a coisa, antes, “produz o mundo a partir de sua inconformidade com o mundo.” [25] Por conseguinte, para Kosuth, o importante é que haja um resultado visual. “Uma e três cadeiras só é a obra que o artista quis quando é montada e vista no espaço.” [26]

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Gostaria de concluir formulando uma questão para uma futura reflexão sobre a arte na contemporaneidade: ainda que divergindo da concepção greenberguiana de autonomia da arte, em que medida as diferentes teorias de arte implícitas na pop art de Warhol, a arte minimal de Andre e a arte conceitual de Kosuth seriam devedoras da concepção kantiana de autonomia da arte? Noutras palavras: nas obras de Warhol, Andre e Kosuth existe algum tipo de conexão potencial da arte com a filosofia que permite uma compreensão não filosófica da própria filosofia que não remete à noção de um fim da arte, isto é, o caráter de autorreferência da arte implícito nas obras dos três artistas expõe o lugar das forças de uma consciência corpórea (o Gemüt) de sensação e auto afecção de sensibilidade, imaginação, entendimento e razão, lugar este de onde brotam, por assim dizer, as ideias estéticas, aquela ideias que vivificam a alma e dão muito a pensar... e, justamente por isso servem como regra de ajuizamento para pensarmos a arte na contemporaneidade não apenas como um pensar a si mesma da arte, mas, também, como um pensar a nós mesmos.

[26] Mammì, Lorenzo. O que Resta: Arte e Crítica de Arte. São Paulo, Cia Das Letras, 2012, p. 45-53.

Nenhum comentário:

Postar um comentário